domingo, 20 de abril de 2025

Afinal, Solo!



The Aeroplane
, Alfred Stieglitz (1910)

   Acompanho a poética de Sebastião Ribeiro desde o primeiro livro. O autor de & e de Glitch harmoniza em Solo, no mesmo plano de criação, ponderações refinadas com o ultracotidiano. O talento identitário está em expor na superfície do texto roteiros da vida comum concomitante à densidade dos versos. As “miudezas da vida” convertidas no olhar para além do lugar — comum é, para mim, a expressão maior na poética desde ludovicense que vive um mosaico de Paço do Lumiar. 

    Porém, não há o maniqueísmo de praxe; as duas vias da existência se cruzam e se unem numa só, mão e contramão, freios e colisões. O poeta não nega o olhar diante de qualquer virada de chave, e não há desespero frente às situações. No lugar de passividade, porém, a concordância ativa, o que supõe construir, desconstruir indiferente a um ideal de resultado. Solo experimenta proporções em que a vida se esparge, e então surpresas e mistérios a compor o dia comum. Não simplifica, nem complexifica (embora a dor, embora o prazer). Nesse sentido, a vida sem enfeites surge para as imprevisibilidades de que a poesia é, senão ela mesma. Senso de apartamento, mães brigando com os filhos, gesso trincado, cinza dos azulejos da cozinha, essas são algumas das muitas expressões do corriqueiro sem a prévia estetização — aparições bruscas e inevitáveis. Nesse mesmo intervalo, o poeta acerca-se de imagens — junta as peças de uma apurada obra de arte. Previsíveis peças espalhadas, fáceis e reais ao domínio do ficcional de alta voltagem. 

    Urge dizer que Solo, apesar de conservar um projeto estético apático à cultura do consumo, se mostra mais carismático que os trabalhos anteriores de Sebastião Ribeiro. Não obstante, o poeta não inaugura procedimentos técnicos a romperem para uma padronização, não abre mão da excelência da linguagem. O que há é uma fluidez que desconsidera um leitor ideal. Dito de outra forma, as imagens nos eventos comuns descortinam um dia a dia de maior cumplicidade com o leitor. Porém, não se constata supressão de uma poética séria, nem truques de visibilidade. Ocorre que, não cedendo necessariamente para versos de fácil compreensão, o livro se assimila mais pela intuição e menos pela análise. 

    Vale acrescer que a relação da obra com o leitor solidifica uma criação poética refém de um tempo disperso, desprendido, declinável e possível. Tanto que o poeta ousa acreditar no sorriso dos outros de há 4 livros publicados. O homem na sua angústia de materializar a fonte dos poemas, de querer o pão sem metáfora. Sob contradições da vida, meras circunstâncias, ora o desejo de trair a poesia, ora a reclusão de esquecê-la, ora a curiosidade de nela crer, ora a chama de vivê-la, ora a vontade de dá-la a quem as escreve na vida. Enfim, solos ficamos — nosso estado de graça. Solos acompanhamos a linguagem que cede aos eventos ordinários simultâneos à inventividade poética, objeto de releituras da obra e de nós mesmos: (...) talvez / só devesse escrever / até o bar abrir / só escrever / talvez / o nome de um inseto / de um remédio / de um amante que / prometeu sem falar / Escrever / para reunir e partir / ao mesmo tempo / essas coisas / a névoa nos olhos / a lua ofuscante / o soltar das mãos / estão todos aqui / ao lado da cama / sem fazer questão / de entrar na história / ou vibrar o sentido / primevo de tudo. Afinal, solo!


G. Monteiro*


*Geovane Fernandes Monteiro é autor, entre outros, de Paradeiro (Editora Nova Aliança, 2016; contos).


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