sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

idade de consentimento


Não consigo satisfação até falar com anjos
Preciso mirar o olho de deus
lançar meu ser ao cosmos como isca aos milagres
tomar o ar e derramar visões
destrancar aquela porta que já está aberta e entrar na presença
do que não consigo imaginar

Preciso de respostas para o que ainda não sei as perguntas

Exijo acesso ao conhecimento, à possibilidade dentro do milagroso
a presença da luz massacrante

talvez do mesmo modo que lagartas exigem suas asas lepdópteras 
ou girinos exigem sua sapice
ou o filho do homem exige a saída
do seguro, morno útero

*


Age of Consent

I cannot be satisfied until I speak with angels
I require to behold the eye of god
to cast my own being into the cosmos as bait for miracles
to breathe air and spew visions
to unlock that door which stands already open and enter into the presence
of that which I cannot imagine

I require answers for which I have not yet learned the questions

I demand the access of enlightenment, the permutation into the miraculous
the presence of the unendurable light

perhaps in the same way that caterpillars demand their lepidoptera wings
or tadpoles demand their froghood
or the child of man demands his exit
from the safe warm womb

(tradução minha de Age of Consent in KANDEL, Lenore. Collected Poems of Lenore Kandel/with a preface by Diane di Prima. Berkeley, California: North Atlantic Books, 2012)
__________________________________

Lenore Kandel (14.01.1932. Nova Iorque - 18.10.2009, São Francisco) foi uma poeta americana, ligada ao movimento beat. Em vida, publicou pouquíssimo -- formalmente falando, entretanto sua poesia, carregada de um sentimento/entendimento erótico, causou impacto. 

A razão desta tradução foi o deslumbramento com o texto Age of Consent, motivado pela curiosidade em conhecer mais de Kandel. Fui impelido e inspirado à busca pela notícia de que Kandel tratava a poesia como uma experiência de autoconsciência (tanto que via um problema em tratá-la como algo à vista e disposição de todos; a poesia perderia muito do seu propósito original, salvo minha ignorância). 

Perdido como estou, relembrar disso me ajuda a destravar algumas pendências do meu caminho e relação com a poesia. Se isso será o bastante, não sei dizer ainda; mesmo que não, já vale como um apito em minha cabeça. 

Esta é minha forma de agradecer e homenagear Kandel.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

face à


A mensagem está dormente (ou será cansada). Opressões circundam o meio-termo da liberdade. Entre doente e estranho, de alguma forma o corpo está pendurado à sorte de um todo: povo, cultura, política, seu vômito, a desesperança e meu resto de dignidade. 


Assim, enlameado, preso pelo pescoço a um poste velho, reconheço outros cães. Mas ainda só espero. O caminho me será mostrado. 

Aguardo-me.


sábado, 4 de novembro de 2017

rubrica


O poeta no bunker de seu poema
parte à África

O poeta que mudo escreve louco
permanece no canto de quarto
cheio da tarde

O poeta sem escolha no casaco velho do passado
O poeta no espelho e no conjunto residencial

O poeta sem unhas no desejo de
mastigar olhos escuros
O poeta na era cristã salivando meninos

O poeta sem poder ou coquetel molotov
possível ao couro da autoridade

O poeta na gaveta da meia-noite inteira
sem nada nos dedos
O poeta com medo de não ser convidado
O poeta que está nunca o sendo
O poeta cantando no último ônibus
O poeta e o corte social

O poeta azul na garrafa de vodka
cansaço e refrigerante
O poeta possível na sala mal-iluminada
O poeta crível no incandefluorescente
O poeta merecido ao escuro movediço
O poeta na trilha do boy que o deixou
em slow-mo

O poeta assim assado cheio de atos
sem afagos
pois acreditam-no empobrecido
pela ferrugem dos braços

O poeta sem nome em seu nome
em neon ciente
das pernas que passam
física existente no momento
que aceitou-lhe um banco da praça


O poeta e a arte clássica do encobrir
testemunha o que fornica em teoria
O poeta em fins sem inteligência
possível em sua ausência

O poeta escroto quando pelas nove ainda
é um homem
O poeta moderno na feira sem quadro de giz
que se vira ao passarinho que diz ‘ei, você’

O poeta e a luta de clavas
O poeta e a esperança da morte natural
& sua ânfora de anáforas necessária
– não mais trocadilho de merda ou eco gratuito

O poeta e o piegas
a série cômica
a novidade
a semana passada

O poeta no futuro cheio de tudo que já é
O poeta e o silêncio que todos esperavam
O poeta e o que gostaria de pôr entre os lábios

O poeta na calçada
e o nada metafórico
que ali o respondia
O poeta e o modo de usar
dos dentes permitidos
O poeta e o anti-histamínico
quando da volta do açougue
atrás dum cão conhecido

O poeta e a mosca presa de repente
no ar-condicionado
Subitamente
o poeta e o que lhe interessa:
a fase fálica/oral

O poeta e a falta dele
(a falta dele) e do método monográfico
O poeta na fuga de Descartes menino
rumo às macieiras
O poeta e sua falta de mãos espalmadas
caminhos de percevejo
e inseto branco voador não-identificado

O poeta escondido-calado-criado
num lago entrevisto de girinos e diáfanos
O poeta para tanto
o bastante
o contudo
ele poeta ≤ ele poeta

O poeta em cento e vinte possíveis
versos prolixos

O poeta é a senhora de pernas tortas
vivendo a lição que ressurreição alguma trouxe.

                                                
(in RIBEIRO, Sebastião. &. São Paulo: Scortecci, 2015)

domingo, 1 de outubro de 2017

fcuk yuo



Estou movido pela perda de algumas cores, por essa areia nos dentes. Pelo atrito por quem acendi velas, altar de morcegos mortos no quintal.

Estou movido pela ânsia em correr de você. De ter mastigado os últimos trezentos dias, entre abúlico e sedento. Sou movido por tantas coisas que o resto é correr mesmo; não fugir, mas desviar da poça de lama em que você se transformou.

Estou movido por uma imagem no espelho que me cansa e intriga. Insiste como testemunha em meus sonhos. É o que posso fazer. Vamos correr, mas fora de gestos vãos. Estou movido pelo desejo em desejar cada vez menos.

Quer saber? Só desejo que você

se

foda

.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

the poet of ignorance/o poeta da ignorância



THE POET OF IGNORANCE

Perhaps the earth is floating,
I do not know.
Perhaps the stars are little paper cutups
made by some giant scissors,
I do not know.
Perhaps the moon is a frozen tear,
I do not know.
Perhaps God is only a deep voice
heard by the deaf,
I do not know.

Perhaps I am no one.
True, I have a body
and I cannot escape from it.
I would like to fly out of my head,
but that is out of the question.
It is written on the tablet of destiny
that I am stuck here in this human form.
That being the case
I would like to call attention to my problem.

There is an animal inside me,
clutching fast to my heart,
a huge crab.
The doctors of Boston
have thrown up their hands.
They have tried scalpels,
needles, poison gasses and the like.
The crab remains.
It is a great weight.
I try to forget it, go about my business,
cook the broccoli, open and shut books,
brush my teeth and tie my shoes.
I have tried prayer
but as I pray the crab grips harder
and the pain enlarges.

I had a dream once,
perhaps it was a dream,
that the crab was my ignorance of God.
But who am I to believe in dreams?

* * *



* * *

O POETA DA IGNORÂNCIA

Talvez a terra esteja flutuando,
não sei.
Talvez as estrelas sejam papel picadinho
por tesouras gigantes,
eu não sei.
Talvez a lua seja uma lágrima congelada,
não sei.
Talvez Deus seja apenas uma voz profunda
ouvida pelos surdos,
não sei.

Talvez eu seja ninguém.
Certo, tenho um corpo 
e não posso escapar dele.
Eu gostaria de sair de minha cabeça,
mas isso não vem ao caso.
Está escrito na tábula do destino 
que estou presa nessa forma humana.
Sendo esse o caso, 
gostaria de chamar atenção ao meu problema.

Há um bicho dentro de mim, 
se agarrando ávido ao meu coração, 
um enorme caranguejo.
Os médicos de Boston
lavaram suas mãos.
Tentaram bisturis, 
agulhas, venenos e afins.
O caranguejo permanece.
Um grande peso.
Tento esquecê-lo, fazendo minhas coisas,
cozinhando brócolis, abrindo e fechando livros,
escovando os dentes, amarrando os sapatos.
Tentei orações, 
mas quando oro o caranguejo se agarra com mais força
e a dor aumenta.

Uma vez sonhei,
talvez fosse um sonho, 
que o caranguejo era minha ignorância de Deus.
Mas quem sou eu pra acreditar em sonhos?

(tradução minha de SEXTON, Anne. The Poet of Ignorance (from The Awful
Rowing Toward God) in The Complete Poems: Houghton Mifflin Company Boston, 1981)



sábado, 2 de setembro de 2017

paciência




Esperar
a recusa em mastigar cartilagem
perder os dentes

bicho prostrado consumido
no próprio peso em correntes

o algoritmo
implantado nas curvas do arúspice

antes que tudo passe pelo nada
ou pelas fomes várias
penso na rendição

                              olhos fechados

passes para o surto
de rasga-mortalhas
dentro da noite engolida

                                                                              
                                                                                  (in RIBEIRO, Sebastião. Glitch. São Paulo: Scortecci, 2017)


*Sobre o lançamento de Glitch, clique aqui.


terça-feira, 1 de agosto de 2017

azedo


ribengage, oriebiro, jul, '17

o motor de ventilador que me aluga as costelas recorda de toda sorte que recorre aos cascudos passados para entender do que é feita e como vai a força plástica que me foge do corpo ao modo da coragem e da esperança sob óleo de baleia queimando e se despede ao modo de um pombo cínico e faminto

depois de duas ou três corridas pelo bairro me refaço de tudo aquilo falado inclusas mentiras e ânsias encruadas no dna de homens e gansos sonho com a cretinice que enfia o dedo na justiça como se isso fosse tudo que se pode fazer depois que tudo se perde nos cantos exatos de uma ilha e ressurjo babão toda manhã na fantasia de meu assassino rubricando projetos de lei

(RIBEIRO, Sebastião. Glitch. São Paulo: Scortecci, 2017)

segunda-feira, 3 de julho de 2017

r.i.p. (rest in the past)


selfieportrait, jul 17, oriebiro


Expurgare  você é o dedo, a ânsia ou o vômito nesse vaso?

Expurgare  sou eu o vício, no que há o vício ou o porquê do vício?

Expurgare  o que há embaixo da cama: tua demonice ou o passado em que te guardo?

Expurgare  às voltas com as contas que não batem, o que há e prolonga esse chá de cadeira da mente?

Expurgare  o olho que obseda se contenta em espaço reptiliano e o quanto disso é falta de vergonha na cara?

Expurgare — a morte na área de serviço da memória é um homicídio ou um estilicídio?


sexta-feira, 2 de junho de 2017

menino



O roteiro da parte II de um filme moderadamente bom, contido em todas as manhãs: é sobre como tuas orelhas me desesperam, intrigado com a vida. Tem a parte da fuga, da catarse: lágrimas e gozo do mesmo esconderijo.

E do sentimento – sei lá como chamam –, há a tentativa de medi-lo, caminhar descalço um longo rio. Dar sentido a essa caminhada, como às palavras, essas flechas que se desviam. Estou triste como coisa constituída e institucionalizada, quebra de uma regra auto-imposta sobre regressões. 

oriebiro, firefighter, mai '17

Temo lembrar da tua voz e corpo uníssono, que me põe acima desses passeios da rotina. E a questão em tudo isso é mais que desejo, se não nos veria além dos penhascos, forças abissais me perfurando o espírito: que razão (como um café ou um pente) há nisso, nesse ver que não se contenta em olhar? Por que queima meu corpo e o sentido é de nada se padeço de entender coisa alguma? 

Pudesse eu te conhecer pelos grunhidos ocultos de uma cidade escura... Na existência sozinha de um objeto solipsista, permaneço à beira do ponte, entre ciência e insistência, estoicismo e fogueira. 

Talvez isso seja o motivo de ser desse grito: antes de morrer, pisar em ovos, correr em brasas, dança esdrúxula na corda-bamba, queimar por queimar, além do adubo que serei.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Comprando a puta [Buying The Whore, Anne Sexton]



oriebiro, mai 17. selfsuck

Você é o assado que comprei
e te recheio com minha própria cebola.

Você é um barco que alugo por hora
e te conduzo com raiva até te arrebentar.

Você é um copo que paguei para quebrar
e engulo os cacos com cuspe.

Você é a grelha em que aqueço as mãos trêmulas,
selando a carne até o ponto certo.

Você fede ao sutiã usado da mamãe
e vomito em tua mão qual um caça-níquel
as frias moedas de 25.

***

You are the roast beef I have purchased
and I stuff you with my very own onion.

You are a boat I have rented by the hour
and I steer you with my rage until you run aground.

You are a glass that I have paid to shatter
and I swallow the pieces down with my spit.

You are the grate I warm my trembling hands on, 
searing the flesh until it's nice and juicy.

You stink like my Mama under your bra
and I vomit into your hand like a jackpot
its cold hard quarters. 

(Buying the whore, Anne Sexton. Versão: Sebastião Ribeiro)

______________________________

Claramente o objetivo dessa versão, além do exercício em si, é aproximar alguns dessa linda que foi a Sexton. Tenho uma admiração e conexão por este texto e sei que não há versão em português que o faça tão eficaz como em inglês. Mas acredito que vale a tentativa de transcriação/localização.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

A a B



para G.

Em te ver só concebo o retorno
às falhas dispostas pelas nuvens na
casa silente onde o rodapé murmura
que eu salte e ricocheteie
perdido e esticado no calor do sonho
guarda dos ditos que cercaram-me
a queda pronta e embalada sem que eu
estivesse presente nem tu holograma
me lembrando as costelas
presa inútil ao movimento de fuga
concedido ao primeiro que tentou
te fez aceso, implodido no início
inexato atraindo nossos voos ao chão
queimando a chegada de nossos corpos
inchados, povoados de luas dissolvidas
na espuma bêbada que contém nossos fins

(poema selecionado para publicação na antologia do XIII Concorso Internazionale di Poesia e Teatro Castello di Duino - 2016)




quarta-feira, 1 de março de 2017

Divulgando Livros e Autores da Scortecci: Entrevista com Sebastião Ribeiro - Autor de: GLITCH


Sebastião Ribeiro (São Luís – MA, 1988) é graduado em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão. Componente da obra Acorde (Scortecci, 2011), com Igor-Pablo e Wesley Costa; pode ser lido em Macondo n. 6 (2012); Samizdat n. 39, e Substânsia n. 3 (2014), 7faces n. 11 (2015) e Philos n. 2 (2016). Autor de & (Scortecci, 2015). 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

glitch (exhibit G)




Idos

Me coça o coração até que fira
arame esticado cerca ao contrário

estar é algo extenso
espera cada célula se desfazer
inseto oco mínimo e implodido
ou o tempo gotejando da pedra
invenção de um espírito

bouazizi palach quang duc em prece
as formas que viver toma desfilam
em ciranda

estamos aqui dispostos ao corte
ou nos levam ou nos deixamos

você e sua boca de fogueira
suportam bem basta-lhe cuspir
não nós

que fazer além da chama?

Contar o peso das moedas
infiltrar sinais de rádio
no fundo do ribeiro onde
me consignaram o calor

(RIBEIRO, Sebastião. Glitch. São Paulo: Scortecci, 2017)


terça-feira, 24 de janeiro de 2017

P


Estas linhas são âncoras. E também anzóis, que expõem, acima de tudo, minhas vitórias, pois as quedas estão bem-dispostas aos meus pés. Fui envolvido. Envolvi. Ganhei. Perdi. Chorei. Ressurgi. Chorei mais. A verdade é que ainda choro vezenquando. Estou vivendo sem medidas. Todos os caminhos parecem embaçados. Não pertenço a lugar algum além desse em que fui deixado. Sei disso. Muito bem. Tanto que, consciente, prefiro o lugar da dor. É o que conheço. Me previne de estar ao vento. Ainda que você claramente tenha me jogado ao mar. Você, cheio de defeitos. Qualidades, algumas. Mas suficientes para me levar a algum motivo novo, outra implícita faceta da minha vida. Peguei o que tinha e me joguei. Até em teu beijo chorei. Você me tomou nos braços e disse que estava ali. Ali eu sabia que estava perdido. Hoje eu revolto a perda. Balanço-a, insípido, idiota. Cego. Cego das coisas que ainda virão. O Universo é testemunha, eu tento. Drago-me, arrasto com forças tudo que era antes de você. De tanto puxar, deixar ir, apadrinhar, sentar num banco de shopping e marinar no travesseiro, decido ser por mim. Você ri, vive como se nada aconteceu. Provável que para você foi assim. Agora sei. Oh, life is bigger, bigger than you and you are not me. Não cantarei vitória ainda e não verei as flores se abrirem na madrugada. Eu deixarei. O que tenho é ar nos pulmões, uma história antes de você e uma antes de mim mesmo. Conhecendo a mim, nada será fácil. Você estará aqui. Como no dia em que chorei em teu beijo. Só que agora, na cabeça, solto tuas mãos. Vá para onde quiser, não devo nada em tua cabeça. Me agarrei a uma centelha, e vejam só que ironia, de fato ela causou incêndios. Então que a chuva venha e se misture às minhas lágrimas. Ela passará. E ao fim ou mesmo antes, eu serei mais que eu. Continuarei caminhando, com meus esperancismos... Feito de memórias e de lírios.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

glitch (exhibit F)



Júnior

cemitério & jardim
mesma linha d’água
descanso em pedras de sal

RIBEIRO, Sebastião. Glitch. São Paulo: Scortecci, 2017


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