terça-feira, 27 de janeiro de 2015

dos processos (poema de '&')


o que procuras pra onde vais o que serás, jumentinho?
***
dos processos

do dia de hoje
a marca duma manhã antiga
a falta que me conhece toda trilha
antes do passo assíduo de quem posso ter sido
antes de me conformar nesse corpo-mim

do dia em qualquer parte
a missão?
meu ritmo de burra prenhe fuçando lixo
não me deseja sentido
nem permite que nasça lógica numa perda

missão?
apanhar dez por cento de aumento
como a mosca de sorte sobre o gato vazio

do dia furado
o sono preciso
que plastifica minha sombra medrosa
feita de partes que piso e ainda assim voam

que diria um de meus pais perdidos
da fuga que não conheceram?

sobro em processo ciclo ou inferno
sobro do velho ou do inseto

me sobro no invento de outro labor
que não o do orgasmo perfunctório
de meus dias internos gastos e letais

(RIBEIRO, Sebastião. &São Paulo: Scortecci, 2015, pg. 100)

***

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Rapel ou os dados de Deus (por Bioque Mesito)


A seguir: o primeiro texto de apresentação de meu livro &, que está no prelo e será lançado neste trimestre (data e local a confirmar). Tive a grande oportunidade e o consequente prazer em conhecer o poeta Bioque Mesito há 4 anos e acabar, inclusive, me tornando amigo do Fábio Henrique Gomes Brito também :-D De qualquer modo fiquei muito satisfeito com a colaboração e quero compartilhá-la com vocês. 

*

RAPEL OU OS DADOS DE DEUS


& daí se a vida fosse apenas a vida dentro de um livro de poesia? A obra de um poeta é sempre uma incógnita. Muitos preferem romances de mil e poucas páginas ou crônicas que falam do cara mijando pela manhã e comendo a mulher no final da noite (mera obviedade, infelizmente). Eu prefiro a poesia. Minha predileção é por bons livros de poesia.

Sebastião Ribeiro, em pleno século vinte e um, presenteia-nos com um livro de poesia. Que loucura! No mundo de modismos, de novas tecnologias, de pensamentos zen-isso ou aquilo, de padrões estéticos… Ele nos apresenta um livro de poesia. Sua estreia.

Talvez, por eu ser um misantropo assumido e goste de excentricidades, atento-me para os livros. Um livro de poesia é um cosmo de orgasmos. A música que toca dentro de um livro de poesia, o perfume, a simetria, a vida e tudo que se possa imaginar são indescritíveis.

Tudo vem deste & (livro espaçonave, bálsamo, canto, silêncio, pausa, grito), livro de estreia do poeta Sebastião Ribeiro. Se por acaso, mas só por um momento, acharem que estou exagerando, então abram as páginas iniciais deste.

É como uma revoada de pássaros, um monte de beleza e delírio, um som que quer explodir. Invenções fora do padrão, uma missa orgástica, a cruz dos dias que passamos parados no quarto escuro & a saída para tudo isso.

No poema Provisório, começa a confissão de suas sensatas e belas inquietudes: “o poema consome parte do tempo que me faria pegar um lotado menos cheio / o poema consome o homem abatido / queimando seu espírito fora do prazo de validade”.   

Até nas metalinguagens, Sebastião Ribeiro não derrapa. Digo isso, pois, o estilo já fora muito rebuscado e é sempre bom que se encontre outras saídas. Apesar de que em poesia tudo ou nada cabe. O poema Rubrica é um deboche/ode não simplória aos vates:

(...) 
O poeta na gaveta da meia-noite inteira
sem nada nos dedos
O poeta com medo de não ser convidado
O poeta que está nunca o sendo
O poeta cantando no último ônibus
O poeta e o corte social 

O poeta azul na garrafa de vodka
cansaço e refrigerante
O poeta possível na sala mal-iluminada
O poeta crível no incandefluorescente
O poeta merecido ao escuro movediço
O poeta na trilha do boy que o deixou
em slow-mo

(...) 
O poeta na calçada
e o nada metafórico
que ali o respondia
O poeta e o modo de usar
dos dentes permitidos
O poeta e o anti-histamínico
quando da volta do açougue
atrás dum cão conhecido

(...) 
O poeta é a senhora de pernas tortas
vivendo a lição que ressurreição alguma trouxe.

O ritmo quebrado de Sebastião Ribeiro é fantástico. É na imperfeição que se encontra a poesia. Versos belos, palavras belas, contextos belos fujam de nós pelo amor do divino. Estamos falando de poesia e não de buquê de flores. A feiura, o distorcido, a assimetria, a discordância dos moldes prontos é a mais pura poesia. Então, quando Sebastião Ribeiro quebra o ritmo, o faz da forma mais simples e consciente possível. Não tem medo de ousar, conferir palavras está fora de cogitação em suas crias. Ainda bem.

& tem o espírito de um jovem com cabeça de quarenta e poucos. Pois, destila poesia vinda de um ainda menino de vinte e poucos, mas com os pés e as mãos livres para dar continuidade a um projeto de vida, que é a sua poesia. 

O seu livro de estreia não poderia ser mais bem arquitetado. Tem conhecimento, vida, tesão, (des)esperança, tem poesia. É um primeiro livro, mas não é qualquer um. Tem pontuação. Quem abre e lê o & está pisando em uma rota de gratidão. 

Neste livro, os poemas que se destacam, segundo o nosso olhar, são: Ninho, Balancete, Matricídio, Pedágio, 28.12.2011, quarta-feira, 11:31, Contumaz réquiem dos vivos, Mula, Meio expediente, Este lado para cima, Dízimo, Homofobia, O que fazem as mariposas quando chove, Calopsia, Ritmo, Fast forward e Futuro: curto-circuito.

Porém, o suprassumo do livro, o que mais desperta para um caminho de grandeza literária são três poemas: Mote (& foi-se o tempo dos épicos / &  foi-se em seu inverso-interior aluminado o meu tempo / hoje é a luz receitando meus olhos/ hoje é todos os espaços contornáveis preenchidos por dúvida); Inevitáveis fotogramas na mente de uma ave de granja (dia / teu único olho / a boca me despe / 32 fouettés en tournant / na casa escura / eternos // inventas algo de frio / tamborilas um crânio que pende / num corpo de espuma) e o mais profundo e apaziguador poema de todos do livro: Voltas:

i.

5 da manhã
copo d’água ou banho frio
quem se apropria de quem

eu sou Macabéa
com alguma esperança

ii.

na única vez que criança
fui à praia
o que se afogou
persiste túmido mas eclipse
de um mistério habitante
desses que se vê
no olhar do motorista das 5 30

antes
sentir falta da areia
dormir em caravelas

agora há vazio
no imóvel que não tenho
na calvinkleinjeans que não uso
na alegria suposta
em servir o Laboratório Jesus
embalando sua água sanitária

já poderia fingir
fingir a vida
eficaz e exata
(feito um copo d’água ou
um banho de madrugada)

se
pudesse sumir rio ou me
esconder salino
em Bengala ou Guiné
mas não

antes disso
é preciso a certidão
de meu estado roxo e suspenso
sob a lâmina derretida
do estuário qualquer

iii.

A ÚNICA ESPERANÇA que me ocorre
na cabeça de menino pedubó
habita este planeta-estrela à minha frente
enquanto banho no quintal
às 5 num meio de fevereiro

Agora é sonhar maquinalmente
e fingir fingir não saber dessa conversa
de água e morte até receber
meu soldo

**

Bioque Mesito é poeta, foi colaborador do Jornal Pequeno e seu suplemento literário Guesa Errante, participante/ integrante de importantes grupos literários maranhenses nas décadas de 90 e 2000. Autor de A Inconstante Órbita dos Extremos (Cone Sul, 2001- IV Prêmio Universitário de Literatura) e A Anticópia dos Placebos Existenciais (EdFunc, 2008 - Prêmio Sousandrade do 31° Concurso Literário e Artístico Cidade de São Luís).


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