quarta-feira, 13 de junho de 2012

profundamente


Profundamente
Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam 
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avó
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão eles?

- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

e e e e e e e e



As palavras entrançadas neste instante parecem intrusas, enfiadas na tarde que foi feita para se comprazer em corpos outros; acontece que me sei poluído, desgastado, entortado por vozes, gestos, silêncios, olhares, mentiras na parede... fosse aquela ânsia tradicional, que tempera cada expectativa e valoriza cada ação que será esquecida, mas é coisa que embruma a vista e a certeza, rasura o ritmo da grafite deslizante e revela o quanto perdemos, ou o quanto outros ganham.

Claro, falo de poesia, e quero falar do problema (neste momento coletivo) mais intrigante para quem a valoriza ou não:  o que me diz, ou não, a poesia? Pra que serve, como faz, por que existe? Ainda existe por que existe perda de valores, de auto-consciência, de abertura. Quem a impede, tem sua razão. Mas é precipitado vê-la como mera distração. Mesmo quando entretém, re-circula no espírito do entregue o peso de ser humano, para o bem e para o mal. Parte do problema se chama, simplesmente, preconceito, ou ainda, falta de sensibilidade mascarada por teoria desperdiçada para fins fátuos. Isto é desrespeito e desserviço ao estudioso e ao artista.

No fundo, particularmente, me interessa uma poesia que chegue às mãos do leitor crítico e sensível à Arte, por mais que este caminho se encontre cheio de obstáculos há pelo menos 100 anos (Pound o diga...); sei que, por segurança, o poeta procura estar no mundo do alto estudo ao mesmo tempo que, consciente das diferenças de recepção, cisca algo no campo daqueles que não precisam deste estudo, estão satisfeitos em sua curiosidade, cheio de inteligência, mas que se afastam da arte da palavra por razões que considero de cunho socioeconômico, ainda, só que com uma pitada de ilusão acadêmica, que, SIM, admito, contamina a boa parte dos escritores, incluso eu.

Só queria em meio a estas palavras (vide também poema acima) meio desengonçadas jogar um pouco de luz sobre a beleza simples e por vezes incomunicável de todo tipo de poesia, onde quer que esteja. E que vejo as pessoas se fecharam tanto em si mesmas, aos outros, que, embora não lhes tire motivos, pediria que relativizassem, e dessem chances à intuição, ao diálogo, à sutileza de certos gestos e palavras; embora certamente piegas e clicherento, creio piamente neste discurso: a vida (sumo de qualquer verso), meus senhores, é curta, bela e expressável.

[inspirado pela redescoberta de Bandeira, ontem, numa aula de Literatura Brasileira...]


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