terça-feira, 3 de janeiro de 2012

megalomania


Sou normal. A primeira linha é sempre a mais difícil. O discurso nunca é o mesmo para todos. A conclusão é constantemente uma carta de alforria, nunca de explicações. Sendo assim, me apalpando no espelho me considero normal.

Sou normal. Será que me viu? Será que vai comigo? Estará pensando em mim? Estará excitado?  Estará estrangeiro? Estará ansioso? Estou ansioso. Sempre. Nunca menos que ansioso, mesmo que em desânimo. Anseio me desanimar, porque acalma. Sou normal.

Sou normal. Tenho medo do escuro mesmo sem embasamento teórico. Vejo ratos correndo para debaixo de minha geladeira às 14 h. Estoco areia das ruas debaixo das caixas onde estão meus documentos. Suo aos píncaros nas noites de domingo para segunda-feira. Sou normal.

Sou normal. Tenho amigos que não falam como eu. Tenho amigos que não sou eu. Vejo a cor de seu dinheiro quando é tarde para uma explicação, ou quando não consigo me calcular num banheiro de bar sem espelho, água e sabão. Quero jogar sinuca. Sou normal.

Sou normal. Sempre busco uma roupa adequada a ser tirada depois. Rio quando nego o que esperam de meu corpo. Rio quando acredito ter tido alguém em meu pensamento, e esta pessoa admira sabe-se o que pelas janelas dos ônibus. Rio quando o movimento do transporte permite esconder o rosto, ou expô-lo, com a mesma naturalidade. Sou normal.

Sou normal. Centenas de boas ideias esmaecem ao passo da crença que serão boníssimas no dia seguinte e ótimas se as perder. Deixo poemas passarem sem escrita, pois acredito na imortalidade. Adoro admitir o paradoxo: ser mortal enrijece de sangue algumas palavras. Sou normal.

Sou normal. Tento brincar mentalmente para pegar no sono, mas nem sempre funciona. Sei o enredo, o clímax, os personagens. Entretanto a narrativa é falha, portanto talvez há romance no pensamento. Tento brincar mentalmente com os corpos. Sou normal.

Sou normal. Minha fé é pouca, paganismo e não-paganismo me parecem coerentes. Mitologias existem em tudo. Minha fé é pouca. Penso que me levarão, e peço acreditar piamente nalguma coisa que me encha de certeza. Peço a Deus por meus mistérios. Sou normal.

Sou normal. Dublo músicas em ônibus lotados. Agrada-me a ideia de que estão atentando ao movimento de meus lábios e de minha língua. Gosto do inglês. No silêncio, confesso a desconhecidos meu corpo cheio de harpas e beats. Sou normal.

Sou normal. A palavra duplica meu desejo por tudo. Carne, tecido, perfume, forma, brilho etc. A palavra minha ainda é distância entre meu futuro amoroso e a existência que lhe projeta. A palavra minha é sempre de outro alguém, já evanescido. Sou normal.

Sou normal. Minha fala inveja a velocidade do som. Nada é dito em suficiência. Tudo não consegue ser moldado com precisão. Nunca saberão o que fui só falando. Ou escrevendo. O silêncio enche de quietude o iminente derramamento. Verbalizando, sou normal o possível. Sou o centro do mundo.

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